Fui convidado para falar em um painel organizado pelo UBS durante as reuniões do FMI nesta última semana junto com Robin Brooks, do IFF, e Steve Kamin, que foi chefe da divisão internacional do Federal Reserve durante muitos anos (inclusive durante meu tempo no Banco Central). Como normalmente faço nessas ocasiões, escrevo para o evento um roteiro, que compartilho aqui.
Começando pela conjuntura americana, todo meu raciocínio, a razão pelo qual eu estava pessimista com a inflação já no começo de 2021 (veja meu artigo no Valor Econômico, "Erro de diagnóstico", 11 de janeiro, 2021), começa pelo fato que a reação ao choque da pandemia envolveu uma inédita coordenação entre as políticas monetária e fiscal. Houve, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, uma enorme transferência de recursos fiscais financiados diretamente pelo Fed via compra de títulos do Tesouro.
Lembramos que os "QEs" pós-crise de 2008 foram feitos em período de restrição/aperto fiscal (de fato o QE2 foi uma resposta do Fed de Bernanke ao precoce aperto fiscal iniciado em 2010). Assim, a potência do QE foi limitada a mudanças na estrutura a termo, achatando a curva de juros, e algum efeito residual de substituição de portfólio - isto é, basicamente pelo canal de preços de ativos, ajudando principalmente a parcela da população mais rica que tem investimentos nos mercados. Mas de 2020 até 2022 vimos uma versão do "helicopter money drop" do Milton Friedman, com dinheiro do Fed indo direto ao consumidor.
Outra maneira de entender a potência do que foi feito é percebendo que, neste episódio, o ativo/dinheiro foi transferido ao setor privado/famílias, mas o passivo/Treasuries ficou no balanço do Fed (e, residualmente, nas carteiras dos bancos, o que recentemente virou um problema para algumas instituições). Não havendo de fato na prática nenhuma "equivalência ricardiana" (onde o consumidor leva em conta o passivo tributário futuro da expansão fiscal), a única coisa que o consumidor "viu" foi seu poder de compra aumentar.
Assim temos o fenômeno do "excesso de poupança", ou liquidez excedente na posição patrimonial dos consumidores e empresas. Assim, apesar de que os fluxos de renda já estão rodando mais fraco (menor transferências fiscais e queda de no crescimento de salários), o ainda robusto estoque de liquidez permite a continuidade do consumo mesmo com a inflação elevada e as condições financeiras apertadas.
Mas essa dinâmica está com seus dias contados, já que o estoque de liquidez está caído, e assim em algum ponto a demanda agregada não mais terá esse importante suporte (dado o fato que isso é algo inédito, devemos ter humildade e admitir que não podemos saber quando a queda de liquidez excedente vai impactar negativamente o comportamento dos consumidores).
As margens de lucro permanecem elevadas a despeito da pressão de custos; as empresas podem repassar aos preços e o consumidor tem como pagar. Somente quando as margens forem impactadas que os núcleos de inflação irão arrefecer via diminuição do custo unitário do trabalho (isto é, vai maior produtividade ou menos emprego).
Se podemos entender a recessão como um processo e não um evento, olhando a fraqueza já evidente em alguns setores, podemos dizer que a recessão já começou, com os recentes problemas bancários acelerando o processo. Altas adicionais de juros não são necessárias, mas dado o enorme erro de diagnóstico que o Fed (e outros bancos centrais) cometeram em 2020 e 2021, não é difícil compreender a vontade de não afrouxar rapidamente (os BCs sempre estão lutando "a última guerra perdida").
Estaria assim o mercado errado em precificar corte de juros ainda neste ano? Não, por duas razões. Primeiro, ainda há um risco concreto de outras "não linearidades" como os recentes problemas bancários acelerarem o processo recessivo. Segundo, o discurso mega-hawkish é fácil de sustentar quando o mercado de trabalho está ainda muito resiliente. Eu tenho dúvidas no ambiente político atual (tanto nos EUA como no Brasil) que essas várias encarnações de Paul Volcker serão sustentáveis quando a força do mercado de trabalho arrefecer.
O processo no Brasil não é de todo diferente, mas temos nossas "jabuticabas": um debate ainda não resolvido sobre o nível da meta de inflação bagunçando as expectativas do mercado; duvidas ainda grandes sobre a questão fiscal (agora nem tanto sobre a intenção de fazer o ajuste, mas sobre a capacidade de entregar e executar o plano anunciado); e uma ainda não bem resolvida convivência entre um governo de esquerda e um banco central autônomo constituído por um governo de direita.
Mas é inegável que, comparado com os riscos MMTistas do início do ano, estamos em um lugar muito melhor, com a questão fiscal muito melhor encaminhada, o que deve levar nosso ainda inflexível Banco Central a cortar a Selic em breve. Simplesmente não há argumento técnico para não calibrar o grau de aperto monetário de forma dinâmica na medida que o processo desinflacionário se consolida no tempo.
Obrigado Tony. Gostaria saber quais são os fatores e interesses principais que estejam tomando partido contra as intenções do governo Brasileiro fazer um ajuste fiscal. São principalmente ideológicos e reacionárias (tipo estou contra a reforma, e sempre será por que ele é "de direta") ou política e práctica (tipo meu estado, indústria ou grupo vai perder recursos que pudessem minar as bases do meu poder ou programa público ou privado). Quando um ajuste finalmeente está traçado em projetos de lei e decretos, quais políticas vão enfrentar o maior resistência e risco de ser afroxadas, colocando a eficâcia da reforma em cheque?