É verdade que a tal “teoria monetária moderna” - usando a sigla em inglês, MMT - já esteve mais na moda antes do surto inflacionário de 2021-2022. Ainda assim, está claro que a lógica do "MMTismo" infectou a prática fiscal, com as decisões tomadas aparentando pressupor que não há efetivamente uma restrição fiscal intertemporal. Basta considerar que desde a grande crise financeira de 2008 o endividamento fiscal global tem aumentado em US$ 50 trilhões, com US$ 20 trilhões sendo adicionados desde a pandemia.
O tal "Bidenomics", que a meu ver tem vários méritos, opera sem restrição fiscal alguma, com a recente proposta de orçamento pressupondo aumentos de impostos que nunca vão passar pelo Congresso, ou usando a pedalada fiscal de pressupor que um novo gasto ou corte de imposto será revertido em algum momento futuro, o que permite que o CBO mostre projeções de endividamento um pouco menos explosivas. Um possível futuro governo Trump não deve ser diferente.
O poder e atração do "MMTismo" como ideologia tem duas vertentes. A primeira seria uma descrição de como funciona o sistema fiscal/monetário (o tal “functional finance”) que, eu reconheço, está correto em muitas das suas afirmações. A segunda são as aparentes conclusões e prescrições desta descrição: que não há limite fiscal efetivo, os governos podem (e devem) gastar o que for necessário para atingir todas suas metas políticas e sociais. A única restrição seria o impacto sobre a inflação, e que esse impacto deve ser regulado via tributação - e não a política monetária.
Vou me ater aqui na primeira vertente. Não para criticar todos os argumentos - vários deles corretos. Mas para mostrar que estão incompletos por serem essencialmente estáticos - não levando em conta como as expectativas dos agentes sobre a ações/escolhas futuras das autoridades podem impactar as ações dos agentes econômicos no período presente.
Como referência, estou usando o texto “Replacing the budget constriant with an inflation constraint” de Scott Fullwiler, texto curto, mas que resume bem vários pontos do "MMTismo".
Fullwiler argumenta que um governo com soberania monetária não precisa casar despesa com arrecadação em nenhum prazo. Assim a restrição fiscal é a restrição errada, a restrição efetiva deveria ser o impacto sobre a inflação.
Vamos ver o que está correto e o que está incompleto nesta descrição. Primeiro é verdade que um governo - como o setor bancário - pode criar poder de compra de forma ilimitada. Isso seria a distinção entre “outside” e “inside money”. O funcionamento do sistema monetário/fiscal garante que essas transações geram demanda agregada efetiva (então, por exemplo, um banco gerando um empréstimo ao mesmo tempo garante o funding deste mesmo empréstimo, não havendo a necessidade de um ato de poupança prévio).
Essa autonomia da demanda seria a razão do "MMTismo" afirmar que a restrição efetiva seria a inflação, já que é possível que haja um excesso de demanda nominal em relação a capacidade real de produção da economia.
Então a questão é o impacto imediato da demanda sobre a oferta. Mas seria somente isso mesmo? É a falta de uma teoria dinâmica onde o "MMTismo" erra.
Tanto no caso do banco como do governo, a criação de demanda gera ativos e passivos. Vamos olhar o exemplo de um gasto fiscal financiado com emissão de dívida (a lógica é similar se há emissão monetária ou criação de empréstimos dentro do sistema bancário)..
Vamos pressupor que temos um governo de agentes privados produtivos. O governo cria uma dívida que é vendida de forma voluntária aos agentes privados, usando esses recursos para redirecionar o uso dos bens e serviços produzidos por esses mesmos agentes. O governo cria poder de compra para ele mesmo, e usa isso para tirar ou redirecionar recursos desses agentes (como esses recursos acabam sendo usados, inclusive para a provisão de bens públicos, não muda a lógica que eles são redirecionados para outros fins).
Notem que impostos funcionam da mesma maneira, mas que neste caso os agentes recebem em troca um ativo que eles aceitam somente se houver a expectativa de reverem os bens de consumo e serviços de volta no futuro. Assim de fato existe uma restrição intertemporal na movimentação de bens de consumo e serviços entre o governo, e os agentes privados na dupla função de produtores e investidores. Assim fica claro que, contrário a afirmação dos "MMTIstas", há restrições além do impacto imediato das ações fiscais do governo sobre a inflação.
Para existir um equilíbrio onde há demanda voluntária para a dívida pública, tem que existir a expectativa dos detentores dessas dívidas que, no futuro, eles vão ter o poder de compra para reaver os bens de consumo e serviços que foram movimentados pelo governo.
De forma dinâmica, como vemos no dia a dia do mercado, os agentes vão precificar esses ativos com um nível de prêmio de risco para refletir a possibilidade que o governo use surpresas inflacionárias para corroer o valor real desses ativos.
Dependendo da conjuntura, os agentes podem precificar o risco de confisco desses ativos, o que pode levar a fuga de capitais ou, no limite, um colapso da demanda por dívida/dinheiro que, em casos extremos, pode levar a uma hiperinflação.
Esse entendimento explica um dos “mistérios” desses últimos anos que os "MMTistas" usam para justificar sua ideologia: o recente grande endividamento dos países centrais (seja pela emissão de dívidas, seja pela expansão da oferta monetária) sem aparente efeitos negativos. O Japão é muitas vezes citado como exemplo, com seu endividamento de 263% do PIB.
Mas em todos esses casos nunca houve o abandono de compromisso de manter o poder de compra da moeda - o que de fato, de forma intertemporal, garante o poder de compra futuro dos detentores da dívida. Óbvio que a capacidade de um banco central sustentar sua meta de inflação vai depender da relação com a autoridade fiscal, e se há um regime de dominância monetária ou fiscal.
Uma adoção “sem vergonha” de uma política "MMTista" quebraria essa estrutura de expectativas, com efeito imediato. Isso explica bem, a meu ver, o fato de nenhum governo abertamente abraçar a bandeira do "MMTismo" apesar das suas aparentes vantagens.
Pode ser que hoje vários países estão agindo como se não houvesse restrição fiscal intertemporal, assim enganado os detentores da dívida. Isso sendo verdade, como prevê a teoria fiscal do nível de preços, devemos ver surtos inflacionários como a de 2021-2022 no futuro, com os bancos centrais, depois do devido “desconto” do endividamento real, entrando para domar a inflação aumentando os juros (o que acaba, pelo menos parcialmente, recompondo o nível de compra perdido durante o surto inflacionário).
Dadas as projeções de endividamento que temos hoje, novos ciclos de inflação podem bem ser o que nos espera no futuro. Ainda assim, e sempre, para evitar uma crise fiscal, os agentes têm que continuamente acreditar que o poder de compra retirado hoje será devolvido amanhã.
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