Por que sofremos crises financeiras e bancárias recorrentes? Já que estamos, mais uma vez, sofrendo uma nova crise, talvez valha a pena "sair das manchetes" e refletir sobre as razões mais estruturais, e como isso pode mudar no futuro.
Uma narrativa comum é que as crises recorrentes são frutos de uma ampla desregulamentação do sistema financeiro começada nos anos 80, parte do "neoliberalismo" da época.
Certamente é verdade que a frequência de crises financeiras tem aumentado nas últimas décadas, mas crises financeiras têm uma longa história, muito antes do período de liberalização e globalização que se inicia nos anos 80.
Outra tese é que crises são parte do processo capitalista, fruto de um processo de investimentos "poluído" por incertezas inerentes, o irracionalismo da "psicologia de massas", que levam a todo tipo de exagero, bolhas especulativas seguidas de "crashes" etc.
Isso é tudo verdade e muitas crises financeiras são frutos de processos especulativos que desembocam em bolhas especulativas, mas como estamos vendo na crise bancária atual, esses processos não são necessários para uma crise bancária/financeira.
Eu colocaria que o fato principal que leva a crises financeiras recorrentes é a confluência entre dinheiro nos seus sentidos público e privado.
Pensamos dinheiro como um mecanismo servindo três funções clássicas: reservas de valor, unidade de conta e meio de troca.
Até aí tudo bem, mas percebam que há uma tensão inerente entre as funções de reserva de valor e meio de troca. Se o papel moeda/depósito no banco central representa a forma ideal de meio de troca, ele não é um meio muito bom de reserva de valor pela existência de inflação e a oportunidade de ganhar juros.
Isso leva a criação de um espectro de tipos de dinheiro, sacrificando seu uso imediato como meio de troca a favor de um potencial de reserva de valor crescente.
Isso está na base do sistema bancário fracionário: o seu deposito à vista é parcialmente intermediado pelo banco em uma operação de crédito com prazo de vencimento maior. Então se mantém, ao mesmo tempo, a qualidade de meio de troca, mas "eleva-se" a reserva de valor.
Óbvio que tal estrutura é potencialmente instável, e assim criamos todo um aparato regulatório e de seguro para lidar com essa instabilidade.
Mas nenhum aparato vai funcionar a todo tempo, seja por assimetrias de informação; "captura" dos reguladores; e o fato de que nenhum banco é imune a cenários extremos - como vimos nesses últimos anos, com a extrema expansão monetária e fiscal, devido à pandemia, seguida por um dos mais rápidos apertos monetários da história.
A maioria de nós pensa que o que temos no banco é "dinheiro", mas na verdade ele é um tipo de dinheiro "privado", no sentido que ele representa uma operação financeira intermediada por um ente privado, onde o depósito tem como lastro parcial alguma operação de crédito.
Há outros exemplos de dinheiro privado, e o sistema financeiro também tem a capacidade de criar/emitir dinheiro de maneira endógena: quando um banco decide criar um empréstimo (um ativo) já tem seu lastro automaticamente criado pelo depósito (um passivo). Somente regras prudenciais e os incentivos de rentabilidade disciplinam a quantidade de crédito privado/dinheiro que o sistema pode criar a qualquer momento.
Uma coisa é verdade: todas as grandes recessões globais têm sido acompanhadas por algum colapso na provisão de dinheiro privado. Este é sempre o "elo fraco" que rompe.
Economistas como Milton Friedman e Irving Fisher, depois da Grande Depressão, sugeriram versões de "full reserve banking", onde forçosamente 100% dos depósitos bancários teriam como lastro dinheiro público, ou reservas depositadas no banco central.
Apesar da obvia atração da proposta no que tange à estabilidade financeira, ela nunca foi adotada na prática, já que apesar de todos os riscos, a economia precisa da intermediação bancária de crédito lastreados em depósitos, e somente o banco privado tem acesso e incentivos de analisar as informações necessárias para medir e precificar o risco de crédito.
Assim, apesar de todos os avanços financeiros das últimas décadas, ainda mantemos uma estrutura igual, onde dinheiro privado representa grande parte da oferta monetária, e onde em momentos de crise a demanda por dinheiro público explode na mesma proporção que implode para dinheiro privado, característica de toda crise financeira.
Mas a ideia de "full reserve banking" está voltando com a criação de CDBCs, ou dinheiro digital emitido por bancos centrais.
Acadêmicos como Morgan Ricks (veja seu excelente livro "The Money Problem") tem advogado pela criação de um dólar digital custodiado diretamente no Federal Reserve. Para ele, precisamos "democratizar" aquilo que hoje somente bancos comercias tem acesso: a conta reserva do banco central.
Há "n" vantagens possíveis em ter moeda digital desta forma, seja para inclusão e segurança financeira, seja a de tornar mais eficiente a possibilidade de focalizar ajuda financeira/fiscal diretamente a quem precisa. Devemos aqui lembrar o excelente trabalho que vem sendo feito nessa área pelo nosso Banco Central, atualmente sob a liderança de Roberto Campos Neto.
Ter um dinheiro público com maior disponibilidade e funcionalidade efetivamente acabaria com o risco perene da demanda instável por dinheiro privado. Difícil imaginar uma corrida bancária contra o Fed...
Mas ainda permanece o problema das funções de avaliação de risco de crédito e intermediação/criação de dinheiro feitas pelo sistema bancário. O dólar digital teria como lastro títulos do Tesouro, e não empréstimos ao setor privado.
Uma resposta a essa questão é que haveria uma acomodação natural na alocação de recursos, onde ficaria mais claro a distinção entre dinheiro, agora somente público, e investimentos, com maior retorno, mas também risco. Taxas de juros/spreads iriam equalizar a demanda e oferta entre dinheiro e investimentos. O dinheiro "misto", privado em bons tempos e público em ruins, cessaria de existir, junto com a volatilidade que ele traz.
O problema dessa tese é que, em momentos de estresse, ainda teríamos o mesmo fenômeno: queda de demanda por investimentos e alta de demanda por dinheiro. Não teríamos, em tese, quebra de bancos (estes se tornariam efetivamente gestores de fundos de crédito e outros ativos), mas ainda haveria desintermediação e bruscas oscilações de demanda entre dinheiro e ativos de risco.
Agora, aqui queria lançar uma ideia bastante especulativa: o que poderia acontecer se ao blockchain por trás do dólar (ou real) digital fossem somadas capacidades de inteligência artificial?
Se o blockchain for "populado" com uma gama suficiente vasta de informações (que podem obviamente ser suplementadas por outras fontes), poderíamos imaginar algoritmos embutidos em contratos inteligentes fazendo a intermediação entre depósitos digitais e seus usos na economia privada.
A liquidez e remuneração dos contratos seriam determinados em tempo real em mercados eletrônicos que, em picos de demanda por menor risco, podem "in extremis" recorrer a uma janela de redesconto automática gerida pelo banco central que (como hoje) mantém sua capacidade de criar dinheiro público sem limite.
A estrutura de blockchain permitiria um acesso instantâneo e totalmente transparente para o banco central a todo o sistema financeiro, já que tudo está "on chain". Não haveria mais a necessidade da fiscalização individual e muitas vezes tardia de cada banco ou fundo. Todas as posições - inclusive a das empresas e consumidores - estariam disponíveis em tempo real, permitindo mudanças de spreads/juros de forma automática para deixar o sistema sempre em equilíbrio. O mítico leiloeiro walrasiano seria incorporado de forma algorítmica.
Obviamente há muito o que se pensar aqui, mas não vejo um problema inerente em imaginar essa transformação sugerida por tecnologias já existentes. Há muita névoa ainda, mas no horizonte já podemos ver o futuro do dinheiro.