NEGACIONISMO NA POLÍTICA MONETÁRIA
Como a queda da inflação nos EUA não tem nada a ver com a alta de juros
Há muitas boas notícias no cenário macro americano. Surpreendo os mais pessimistas, estamos vendo uma consistente queda de pressões inflacionárias sem, até este momento, alguma alta no nível do desemprego. Depois de um pico de quase 9%, o CPI já está rodando na casa dos 3%, com o núcleo (ex-energia e alimentação) caindo de 6,6% para 4,9% - uma desvalorização mais modesta, mas que muitos analistas acreditam que deve continuar dada a tendência de queda nos aluguéis e carros usados.
Igualmente surpreendente têm sido algumas reações a essas boas notícias. Ainda que esteja muito cedo para o Fed declarar “missão cumprida”, há agora variantes de argumentos negando qualquer responsabilidade da política monetária pela indolor desinflação que a economia americana está vivenciando.
Há grande heterogeneidade nesses negacionistas, mas vale a pena tentar traçar elementos em comum porque, a meu ver, há de fato um importante debate se escondendo nessa confusão teórica.
Uma vertente tenta ressuscitar a tese da “inflação transitória”. O ex-economista Nobel e hoje colunista do New York Times, Paul Krugman, tem apresentado uma versão desse argumento, perguntando como seria possível a inflação estar caindo sem uma alta do desemprego, já que seria esse o impacto da política monetária na inflação. A conclusão então é que a alta de juros foi e é desnecessária.
Me parece óbvio que o argumento correto é exatamente o contrário. Foi a (ainda tardia) alta de juros que disciplinou a propagação dos choques da pandemia - que foram tanto de oferta como de demanda - contribuindo para a (até agora) indolor desinflação que os EUA estão vivendo.
O Fed de Cleveland publica uma série de expectativas de inflação baseado em pesquisas de opinião e dados de mercado. Quando a inflação corrente atingiu seu pico em junho de 2022, as expectativas de um ano bateram em 4,2% com a de 5 anos subindo para 2,5% (para referência, antes da pandemia, ambas essas séries oscilavam entre 1% e 2%). Hoje a expectativa de um ano está em 2,5% e a de 5 anos em 2,1%. Acho que o argumento contrafactual correto seria que se o Fed tivesse feito nada/muito pouco em termos de aperto monetário, a convergência das expectativas de inflação - como da inflação corrente - em direção a meta não estaria ocorrendo.
Outra variante do argumento coloca toda a culpa pela alta da inflação nas costas das empresas. A economista Isabella Weber (que esteve recentemente no Brasil) tem sido a mais competente defensora dessa tese (que ela chama de “sellers inflation”, mais bem conhecida no Twitter como “greedflation”). Para Weber, a inflação de hoje seria de “origem microeconômica”, resultado de uma coordenação entre concorrentes setoriais aumentando suas margens frente aos choques de custos causados pela pandemia e a invasão da Ucrânia. Assim a prescrição correta não seria aperto monetário impactando a demanda, mas sim medidas de intervenção nos mercados para forçar a queda dos markups.
Este negacionismo é mais interessante porque ocorreu de fato um aumento de markups desde a pandemia. Agora não sei se precisamos de uma nova teoria para descrever algo que de fato faz parte da teorização padrão nova keynesiana, que tem como pressuposto competição monopolística como estrutura dos mercados de bens e serviços, permitindo a formação de preços com markups acima do custo marginal. Também aqui o contrafactual correto seria que sem o excesso de estímulos à demanda durante a pandemia as empresas não teriam como sustentar uma alta sistemática de markups, e que o subsequente aperto monetário tem funcionado para disciplinar esse processo, baixando a inflação.
Uma outra observação interessante, e aqui eu acho que temos um debate importante que vai decidir se “no final do dia” teremos ou não um pouso suave, é sobre a interação entre markups e salários reais.
Em recente trabalho (ver “What Caused the U.S. Pandemic-Era Inflation?”), Olivier Blanchard e Ben Bernanke mostram, usando um modelo novo keynesiano padrão, que a alta de inflação devido ao choque pandêmico foi, em um primeiro momento, devido a restrições de oferta, o que de fato deixou os salários reais “atrasados”. Mas esse atraso está ocorrendo em um mercado de trabalho aquecido, e que quaisquer chances de um pouso suave requer que haja um ajuste entre demanda e oferta dado a maior persistência dos choques no mercado de trabalho.
Em outro trabalho recente, Steven Kamin e John Roberts (ver “Will recovery of real wages obstruct progress towards disinflation?”) notam que houve uma queda no crescimento dos salários reais em relação a sua tendência com alta dos markups durante a pandemia. Eles rodam várias simulações usando o modelo econômico do Fed, mostrando um cenário de estagflação se houver uma tentativa de recuperar os salários reais sem uma queda dos markups, uma versão da espiral preços-salários.
A boa notícia é que o ajuste nominal no mercado de trabalho tem ocorrido mais pelo lado dos salários do que do emprego, e é isso que principalmente tem elevado a probabilidade de um pouso suave. Mais uma vez, acredito ser forçoso argumentar que a política monetária não tem dado nenhuma contribuição a esse resultado benigno.
Mas apesar de surpreendente - eu pelo menos tenho argumentado que uma recessão nos EUA era algo bastante provável dada a intensidade dos choques desses últimos anos - temos que ainda ter cuidado em achar que estamos vivendo um verdadeiro pouso suave.
Como mostram Kamin e Roberts, o resultado benigno onde os salários reais recuperam parte do território perdido com o choque inflacionário sem gerar mais inflação depende da queda dos markups. Mas essa queda não seria compatível com os altos níveis de rentabilidade hoje precificados pelo mercado acionário, nem necessariamente com a ainda alta demanda por trabalhadores segurando a taxa de desemprego nesses níveis.
Pode ser que as empresas, vendo suas margens de lucro sobre pressão, decidam se defender cortando custos, o que aumentaria o desemprego, desencadeando um processo recessivo.
Com as defasagens da política monetária, o fato que o Fed ainda deve continuar a aumentar a taxa dos fed funds, e dado que o nível de rentabilidade das empresas tem uma forte relação com o nível do crescimento da renda nominal - que deve cair nos próximos trimestres com a queda da inflação - os riscos de uma recessão podem ter caído, mas não desapareceram.