Confusão generalizada na economia global
Estamos na beira de uma recessão ou a economia vai reacelerar?
Qual o estado da economia global, e mais especificamente de seu epicentro, os Estados Unidos? Estamos afinal a beira de uma recessão ou uma surpreendente nova aceleração da atividade? Estaria a bolsa americana, flertando com os melhores níveis do ano, prestes a zerar suas perdas de 2022 impulsionadas pelo frisson com os recentes avanços da área da inteligência artificial?
O ciclo econômico pós-pandêmico continua a surpreender. A previsão que teríamos um forte surto inflacionário depois do governo americano jogar 10% do PIB em políticas fiscais, boa parte disso depois de ficar claro que teríamos vacinas efetivas bem mais rápido do que se esperava, era algo obvio dado a experiência histórica (como o consenso dos BCs e do mercado acreditava que era tudo "transitório" é algo que os historiadores vão debater por muitos anos).
Igualmente óbvio a luz da experiência histórica seria a improbabilidade de o Fed debelar o surto inflacionário sem a economia passar por uma recessão. E neste ponto o consenso está com a experiência histórica, e até o staff do Fed hoje acredita que teremos uma recessão no final deste ano (que Powell & Co. não admitem isso pode ser explicado pela tentativa de diminuir a pressão política sobre a instituição se a previsão oficial fosse a de uma recessão).
É verdade que há setores sofrendo fortes ajustes (manufaturados, por exemplo), mas nada que tem impactado o circuito mercado de trabalho/consumo de serviços.
Considere o setor de "leisure and hospitality", que engloba turismo e restaurantes. Antes da pandemia, lembrando que tínhamos uma economia com efetivo pleno emprego, o setor tinha ao redor de um milhão de vagas de trabalho abertas. Esse número bateu 1,85 milhão em dezembro de 2022 e hoje está em 1,5 milhão. Enquanto isso, o número de pessoas empregadas no setor finalmente voltou ao mesmo patamar que tínhamos logo antes da pandemia, em 16,5 milhões. Nada disso indica uma recessão.
Antes da pandemia a economia não aguentou um fed funds de 2,5%. Hoje, a mesma em 5,25% não está fazendo cócegas no mercado de trabalho. Obviamente algo mudou.
O mais óbvio culpado foi o excesso de liquidez criado em resposta à pandemia. Observe que o agregado monetário M2, ajustado pela inflação, que estava em US$ 6 trilhões antes da pandemia, subiu para US$ 7,7 trilhões em dezembro de 2021, e hoje está em US$ 6,8 trilhões. Isso representa uma queda de mais de 9% ano/ano - a maior queda desde a recessão de 1980 - e mostra que o aperto fiscal/monetário está tendo efeito, mas que ainda estamos longe de "normalizar" o nível de liquidez.
O agregado monetário é um espelho do "excesso de poupança" dos consumidores, consequência da "harmoniosa" ajuda que a política de compra de títulos do Fed deu para fazer funding aos pacotes fiscais durante a pandemia. Mas também temos que levar em conta a criação de riqueza, que também ocorreu devido a essa transferência de liquidez. O patrimônio líquido das famílias calculado no funds of flow account pelo Fed estava em US$ 110 trilhões logo antes da pandemia, crescendo entre 5 e 10% ao ano. Com a injeção de liquidez o patrimônio líquido subiu 21% ao ano no primeiro trimestre de 2021, batendo em US$ 144 trilhões, e ainda estava em US$ 139 trilhões no final de 2022.
Diferenciar níveis de taxas de crescimento parece algo trivial, e é, mas eu acho crucial para entender o porquê da força da economia americana. Olhando essas variáveis podemos chegar à conclusão que a normalização dos efeitos das extremas ações de política econômica está ocorrendo, mas a uma velocidade comedida, e que ainda não forem plenamente normalizados.
O Fed poderia escolher acelerar esse processo de normalização, e, portanto, a convergência da inflação à meta de 2%: basta continuar a subir a taxa de juros. O risco aqui são os efeitos de estresse sobre o setor financeiro, como vimos recentemente nos médio e pequenos bancos, bem como quase que garantir uma recessão. O outro risco é que a inflação se estabilize em um patamar acima de 2%, junto com as expectativas de inflação, uma situação que demandaria provavelmente um aperto monetário e recessivo muito mais severo.
Política monetária é essencialmente um exercício de gerenciamento de riscos. Neste caso, e a despeito das falas recentes de alguns membros do Fed, Powell parece ter decidido pausar o ciclo, o que pelo nosso diagnostico é a decisão correta se o excesso de consumo é devido essencialmente a fatores de liquidez que estão em processo de normalização, mesmo que esse processo esteja indo mais devagar do que esperado. As indicações que as expectativas de inflação estão ainda bem comportadas colabora para essa estratégia. Um fator de complicação a monitorar seria uma nova retomada da bolsa americana, empolgada com o tema da inteligência artificial aumentando ainda mais o patrimônio das famílias e o efeito riqueza.
Há um paralelo com a situação do nosso Banco Central. A surpreendente força do nosso mercado de trabalho também parece ser fruto de fatores cadentes. Temos, infelizmente, uma desancoragem das expectativas do mercado financeiro devido a temores fiscais e o debate ainda não solucionado sobre o nível futuro da meta de inflação. Com a aprovação do novo regime fiscal e a eventual decisão sobre a meta, a discussão do Copom deveria ser sobre o grau de aperto monetário necessário para a convergência da inflação à meta no horizonte desejável, que deve ser de pelo menos 18 meses (seriam mesmo bom se o CMN fizesse uma reforma na já antiquada meta de inflação).
Entendendo que os fatores condicionantes da demanda agregada estão se normalizando (inclusive o impulso fiscal, que, lembremos, é devido à segunda derivada do gasto), e que as variáveis "exógenas" (câmbio, commodities, preços de atacado) estão caindo, oscilando na direção certa, há obvio argumento em favor de uma flexibilização cautelosa da taxa Selic.