No meio do tiroteio sobre a questão fiscal e da política monetária, o Banco Central resgatou o termo "não há relação mecânica", usado durante a gestão do Ilan Goldfajn, para desvincular o nível do câmbio do nível da Selic.
No seu uso atual, o Banco Central defende - corretamente - que uma eventual queda de juros não estará garantida se a questão fiscal tiver um encaminhamento positivo.
Temos no mercado uma longa tradição de sobrevalorizar a questão fiscal quando se discute a política monetária. Como também notado pelo Banco Central em suas exposições - inclusive por Roberto Campos Neto na CAE na semana passada -, as expectativas de inflação estavam bem ancoradas até o final do ano passado, subindo com a vitória do PT, a retórica adotada pelo presidente eleito e a PEC da transição. Isto é, essencialmente por questões fiscais.
Onde hoje parece haver uma relação mecânica na "visão de mundo" do Banco Central é na relação entre a taxa de juros e as expectativas de inflação. Basta ler o paragrafo 27 da última ata: "O Comitê reforça que irá perseverar até que se consolide não apenas o processo de desinflação como também a ancoragem das expectativas em torno de suas metas".
Devemos entender isso como a colocação de duas condições necessárias para qualquer alivio monetário: desinflação dos preços e ancoragem das expectativas.
O problema dessa dupla condicionalidade é que se as expectativas estão desancoradas essencialmente em função da questão fiscal, e é possível que enfrentaremos uma situação onde a primeira condição foi atingida e não a segunda. O Banco Central, neste caso, vai persistir e não calibrar a política monetária?
Pode ser que não, mas olhando a comunicação atual e as falas dos atuais membros do Copom, há uma defesa incondicional da importância das expectativas.
Essa defesa acrítica das expectativas - e apesar da resposta usual que o Banco Central olha "além do Focus", a verdade é que, na prática e nos modelos de projeção, o que é imputado são os dados do Focus - merece uma reflexão.
Temos toda uma literatura de economia comportamental demonstrando vários "desvios da racionalidade" na formação de expectativas futuras - especialmente nos mercados de ativos. Agora a bem da verdade é que não há nenhum argumento plausível para defender que, de alguma forma, as expectativas e projeções dos economistas que compõem o Focus sejam isentas desses mesmos possíveis desvios.
Isso se aplica, eu acredito, especialmente quando se discute a questão fiscal porque a política fiscal "ótima" é na verdade uma função da visão política que a pessoa defende sobre o tamanho e função do Estado.
Assim, simplificando bastante, alguém de direita vai questionar o lugar do Estado como agente indutor do desenvolvimento econômico, o que automaticamente o leva a defender um ajuste fiscal pela contenção de gastos. Alguém da esquerda terá a visão oposta: o Estado tem papel importante para a economia, e assim devemos ter uma política fiscal sustentável garantindo um nível adequado de receita para o nível de gasto desejado.
Note que nenhum dos dois está pregando por uma trajetória de endividamento insustentável - deixamos isso com os adeptos da teoria monetária moderna. O que se discute é o tamanho do gasto.
Assim uma postura politicamente isenta seria a de aceitar que, neste ciclo eleitoral, a esquerda ganhou, que haverá aumento de gastos e que a questão principal é se haverá ou não o nível de receita adequado para que isso não gere uma trajetória insustentável de endividamento.
No contexto da nova proposta fiscal se discute muito se haverá ou não o aumento de receita desejado pelo ministro Fernando Haddad, mas você não tem de ser um adepto da hermenêutica para perceber que muito das críticas sendo feitas por vários agentes do mercado são sobre a premissa inicial do tamanho do gasto/Estado, e não da sua sustentação no tempo.
Obviamente todos os membros do Focus, como qualquer cidadão, podem ter opiniões sobre essa importante questão. Mas se isso os leva a pressupor que a proposta atual está fadada a fracassar, e porém a única solução será uma inflação maior, aí temos um problema, porque neste caso toda e qualquer evidencia contrária será ignorada e relativizada, com qualquer indicação que apoia a tese pessimista sendo sobrevalorizada (vejamos, por exemplo, a grande importância dada pela "não criminalização" de qualquer desvio fiscal, visto por muitos agentes de mercado como "prova" que o governo já está planejando furar sua própria regra fiscal).
Se o Banco Central fosse ciente dessa obvia dinâmica atual, o Copom não ia postular uma relação mecânica entre as expectativas do Focus e a política monetária. Certamente não deveria considerar a ancoragem de expectativas como condição necessária para alívio monetário se de fato for consolidado um processo desinflacionário.
É altamente improvável que o mercado ancore expectativas até que haja um período de observância sobre a gestão do novo regime fiscal; da definição do nível de metas de inflação; e da indicação do eventual presidente da autarquia. Bom, não é difícil prever que, se a taxa Selic for mantida até que todas essas condições foram atendidas, provavelmente vamos ver a economia entrar em recessão. Está na hora do Banco Central repensar essa "relação mecânica".